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História de uma mala
Vasco Vieira de Almeida recorda um episódio que envolveu a realização de uma estrutura jurídica extremamente complexa.
Um dos aspectos mais atraentes da vida do Advogado é, pela sua própria natureza, o do contacto constante e profundo com todas as manifestações da realidade social na sua multiplicidade e diversidade. Que faz de nós observadores privilegiados de um mundo em simultâneo contraditório e antecipável, estimulante e desesperante, dramático e ridículo.
Dos muitos episódios que poderia recordar, lembro um que envolveu a realização de uma estrutura jurídica extremamente complexa, obrigou a negociações delicadas com um conjunto diversificado de intervenientes e impôs um enorme rigor na organização do trabalho.
E, no entanto, teve peripécias bem divertidas, como se verá.
Em 1992, tinha comigo uma pequena equipa de quatro talentosos e jovens Advogados – a Margarida Couto, o Pedro Cassiano, o Manuel Protásio e o meu filho João –, todos na casa dos 30 anos ou menos, que viriam a ser sócios de topo na VdA, quando mais tarde esta foi constituída.
Nesse ano foi-me confiada a representação jurídica do Estado no projecto, extremamente exigente pelo seu carácter inovador, de construção da Ponte Vasco da Gama – o primeiro project finance em regime de direito público realizado na Europa continental.
Quando, passada meia hora, a chefe do gabinete mandou buscar a mala, verificou-se com horror ter desaparecido, lançando um pânico geral.
A tarefa, iniciada com a preparação e lançamento de um concurso público internacional, implicou a elaboração de um vasto número de contratos relativos à concessão, construção, operação e manutenção da ponte, de reequilíbrio financeiro, de financiamento com o Banco Europeu de Investimentos e com um consórcio bancário internacional – todos com inúmeros anexos e apêndices. Todos negociados, revistos e adaptados à medida da evolução do projecto.
O closing do concurso público viria a ocorrer em Março de 1995, com a assinatura do contrato de concessão (e documentação anexa) entre o Estado Português e a Lusoponte.
Dada a importância pública da obra, o governo decidiu dar grande relevo à cerimónia de assinatura, marcada para 24 de Março de 1995, que contaria não só com a presença do primeiro-ministro e, naturalmente, do ministro das Obras Públicas, que celebraria todos os contratos em nome do Estado, mas também de inúmeros convidados representativos de vários sectores da vida portuguesa.
É então que as idiossincrasias nacionais vão surgir em todo o seu esplendor.
Cada uma dos milhares de páginas do processo teria, nos termos das regras em vigor, de ser rubricada pelo ministro das Obras Públicas, o que, se feito na cerimónia, a prolongaria de maneira inaceitável. Foi por isso acordado que as rubricas seriam apostas na véspera, numa reunião que eu teria com o ministro. Só que o volume da documentação era de tal monta que tive de metê-la numa grande mala de viagem.
Chegado à sala de espera do ministério, fui logo recebido pelo ministro, que simpaticamente me levou para o seu gabinete, ordenando a um funcionário que para lá a levasse.
Quando, passada meia hora, a chefe do gabinete mandou buscar a mala, verificou-se com horror ter desaparecido, lançando um pânico geral. Não apenas pela delicadeza da situação, dado o carácter confidencial de muitos dos documentos, mas por poder pôr em perigo a cerimónia agendada para a manhã do dia seguinte, uma vez que seria impossível, durante a noite, imprimir, reorganizar e fazer milhares de rubricas.
Foi no meio da maior confusão que veio a descobrir-se que a presença da mala abandonada na sala de espera tinha sido considerada suspeita pelos seguranças, que, receando um ataque terrorista, a tinham removido para lugar seguro e chamado a Brigada de Minas e Armadilhas da Polícia, a fim de ser desactivada.
Recuperada a mala, reuni com o ministro, que levou horas a rubricar toda a documentação, página por página.
Ultrapassado este primeiro momento de tensão, não tinham, no entanto, terminado os problemas.
No dia seguinte levei todo o volumoso processo para a cerimónia, para que apenas fosse necessário assinar a última página de cada contrato, garantindo assim que ela decorreria num período razoavelmente curto.
Dirigi-me para Alcochete no meu Renault 5, com a mala na bagageira. Só que à chegada foi-me barrada a entrada pela GNR, que me disse não ter eu nada que fazer ali por se tratar de um evento reservado a “altas individualidades”.
Tentei explicar que, embora “baixa individualidade”, de que o carro lhe parecia prova indiscutível, não deixava de ser Advogado do Estado, pelo que a minha presença era essencial.
Como insistissem, abri, irritado, a bagageira, dizendo que estavam na mala todos os contratos a assinar e que, se não me deixassem passar, ia-me embora e não haveria cerimónia alguma.
E a última imagem que guardo do acontecimento é a do meu pequeno Renault 5 modestamente estacionado no meio de uma formação compacta de carros de alta cilindrada das “altas individualidades”.